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sábado, 28 de novembro de 2009

Jack & Joy

Texto #7 da Semana C.S. Lewis


Numa semana dedicada a C.S. Lewis, não dá para não mencionar aquela que foi o grande amor de sua vida: Joy.

Nascida Helen Joy Davidman, em 18 de abril de 1915, esta nova-iorquina de família judia e com ancestrais poloneses e ucranianos mostrou seu brilhantismo bem cedo. Aprendeu a ler antes dos 3 anos, aos 8 leu História Universal, de H.G. Wells, e se declarou ateísta. Com 23 anos, ela ganhou um dos mais prestigiosos prêmios que um jovem poeta pode receber, o Yale Younger Poets Series Awards, por sua coletânea Cartas a um Camarada. Ela possuía memória fotográfica, podendo memorizar uma página de Shakespeare com uma só olhada, e seu QI era muito acima da média.

Seu irmão, o psiquiatra Howard Davidman, contou certa vez que ele e ela gostavam de ir ao zoológico do Bronx para conversar com os animais. Mas isso não era suficiente para Joy, então com 14 anos: ela queria um contato mais direto com os grandes felinos. Então os dois irmãos passaram a pular os portões do zoológico durante a noite. Eles atraíam os leões para perto da grade, e Joy conversava com eles, fazia carinho na cabeça deles e eles comiam direto na mão dela. As aventuras continuaram durante muito tempo sem nenhum incidente e sem que eles fossem descobertos.

Após testemunhar um suicídio durante a Grande Depressão, Joy tornou-se comunista. Ela acreditava ser esse o caminho para solucionar os problemas pelos quais seu país passava na época. Foi numa reunião do Partido Comunista que ela conheceu seu primeiro marido, William Gresham, autor noir americano que ficou famoso por lá na década de 1940. Porém Gresham não era flor que se cheirasse: ele era alcoólatra, adúltero compulsivo e também violento. Ele disparava com sua espingarda em direção ao teto para aliviar a tensão e uma vez quebrou uma garrafa na cabeça de seu filho Douglas.

Certa noite, em 1946, Gresham ligou para Joy dizendo, incoerentemente, que estava tendo um colapso nervoso. Ela colocou os dois filhos na cama e esperou pelo marido, sentindo-se desesperançada e derrotada pela primeira vez na vida. Segundo ela, foi nessa noite que "Deus entrou".

"Havia uma Pessoa comigo naquela sala, diretamente presente na minha consciência - uma Pessoa tão real que toda a minha preciosa vida era em comparação apenas uma sombra. E eu estava mais viva do que jamais havia estado; era como acordar de um sonho. Uma vida tão intensa a carne e o sangue não conseguem suportar por muito tempo; temos que viver nossas vidas diluídas no tempo, no espaço e na matéria. Minha percepção de Deus talvez tenha durado meio minuto."

A conversão de Joy só piorou sua situação com o marido, que começava a flertar com a Dianética, que foi antecessora da Cientologia. Ela pediu ajuda a uma prima que havia acolhido em casa (esta estava fugindo de um marido abusivo) e foi buscar conselho com C.S. Lewis, com quem a esta altura ela já havia trocado muitas cartas, e que havia se tornado uma espécie de mentor espiritual. A viagem dela à Inglaterra foi um sucesso, porém em casa a prima e o marido começaram a ter um caso. Gresham queria o divórcio, e Joy queria a reconciliação. Mas não deu certo, principalmente depois que o marido a espancou após seu retorno aos Estados Unidos.

Em 1953, Joy emigrou para a Inglaterra. Ela buscava talvez mudar de ares, ficar mais perto do novo amigo Lewis e também fugir da caça aos comunistas que ocorria nos EUA. Seu primeiro casamento com Lewis foi de fachada: ele o fez para que ela obtivesse o visto de permanência no país. A amizade continuou, porém Joy ficou doente e Lewis talvez tenha percebido o que estava prestes a perder. Na cama do hospital, o segundo casamento (dessa vez no religioso) foi o que valeu. A morte de Joy, segundo os médicos, era iminente. Porém Deus foi misericordioso e o câncer dela entrou em remissão. Eles viveram quatro anos felizes antes da doença voltar a se manifestar.

Como Douglas Gresham afirmou, Lewis encontrou em Joy sua equivalente intelectual. A amizade entre eles era natural, e o amor incondicional foi uma bênção extra que ambos encontraram literalmente no final na vida. Lewis partiu apenas três anos após a morte de Joy.

Coincidentemente, em muitos de seus livros, Lewis menciona que passou a vida procurando algo e que ele não sabia o que era. Era um anseio e um desejo intenso, que ele vislumbrava em momentos raros sem conseguir definir o que era. Só após sua conversão e compreensão do que somos, de onde viemos e para onde vamos, é que ele entendeu que aquilo pelo qual ele tanto ansiava era algo que ele chamava de Alegria, a saudade do nosso lar eterno. Alegria, como Joy.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Meu padrasto, C.S. Lewis

Texto #5 da Semana C.S. Lewis


Meu padrasto, C.S. Lewis
por Douglas Gresham

Muitos escreveram sobre ele, mas a maioria via o autor das Crônicas de Nárnia como um intelectual isolado. Aqui, o enteado de Lewis, Douglas Gresham, recorda um herói.

4 de outubro de 2007
Jornal The Guardian
(Por ocasião da re-estréia da peça Shadowlans em Londres.)

A hoje famosa peça Terra das Sombras, que está prestes a re-estrear no West End de Londres, é uma de muitas obras sobre o meu falecido padrasto, C.S. Lewis. Foram feitos livros (muitos livros, dos quais eu escrevi dois), peças, filmes e até músicas sobre ele. Essas obras variam entre boas, ruins e horríveis, a maioria escrita por pessoas que mal o conheciam ou mesmo não o conheciam ao todo. Elas podem te dizer (com vários graus de inexatidão) o que ele era, onde ele esteve, quando e o que ele fez, mas quase nenhuma delas pode te dizer quem ele era.

Enquanto ele viveu, eu nunca conheci C.S. Lewis, o nome nas lombadas dos livros. Pois o homem de carne e osso encantadoramente falante que preencheu a minha juventude com sua presença se chamava Jack. Meu primeiro encontro com ele foi extraordinário. Eu era um estudante americano de oito anos, um imigrante recém-chegado, trazido para Oxford logo depois de chegar a essa estranha terra da Inglaterra, onde as pessoas se vestiam de modo esquisito, falavam esquisito e comiam comidas estranhas e improváveis. Eu fui levado para o homem que, até onde eu sabia, realmente conhecia o Magnífico Rei Pedro de Nárnia e o grande Leão Aslam; um homem que, até onde eu sabia, poderia ser um membro da corte do rei Artur. Eu quase esperava uma figura alta e robusta, vestindo uma armadura e carregando uma espada, mas a realidade era bem diferente. Na cozinha da sua casa, The Kilns, fomos recebidos por um homem ligeiramente encurvado, calvo e de ombros caídos, com dedos e dentes manchados de nicotina, vestindo as roupas mais surradas que eu jamais vira. Aquele não era um cavaleiro, era um acadêmico. Um acadêmico da Oxford daquela época.

Apesar do meu espanto inicial, logo Jack emergiu do meu C.S. Lewis imaginário para se tornar real. Eu perdi uma ilusão, mas ganhei no começo um amigo, e mais tarde um padrasto muito amado.

Dentro de pouco tempo, Jack, Warnie (o irmão de Jack, Major Warren H. Lewis) e eu estávamos serrando uma pilha de galhos para fazer lenha. Jack e Warnie, embora fossem acadêmicos, não se negavam a cumprir tarefas humildes. Jack me mostrou a floresta e o lago atrás de The Kilns, e me ensinou a procurar faunos e dríades entre os sicômoros brilhantes e as faias cintilantes. Com ele aprendi a respeitar as plantas, como as enormes cavalinhas do pântano acima do lago; aprendi a amar os campos, as florestas e os animais; a me deliciar com o tempo, dos ventos sibilantes ao silêncio tranqüilo, da chuva torrencial aos raios brilhantes do sol; tudo tem o seu lugar no meu coração, e isso eu aprendi com Jack.

Jack também me ensinou a ler. Não a ler como alguém aprende na escola, mas a ler pelo gosto de ler e de aprender, pois toda a sabedoria do mundo pode ser encontrada em livros. Jack me ensinou isso. A casa era cheia de livros, e nenhum era proibido para mim.

No começo, eu morava em Londres e visitava The Kilns esporadicamente, mas em pouco tempo nos mudamos para Headington, a cerca de um quilômetro e meio, e Jack deixou claro que eu era um visitante bem-vindo. Alguns dos mitos sobre Jack, e existem muitos, vieram do próprio punho dele. “Não sou bom com crianças”, ele disse, mas eu dificilmente via alguém melhor do que ele era com crianças. Acho que ele quis dizer que nunca ficava à vontade com elas, mas ninguém deve ficar totalmente à vontade com os filhos de outras pessoas. Alguns o chamaram de misógino, mas eu nunca conheci um homem tão atencioso com as mulheres, nem alguém tão encantador e divertido quando estava na companhia delas.

Acho que, no mundo triste e sombrio em que vivemos hoje, muitas pessoas terão dificuldade de acreditar no verdadeiro Jack. Ele era um homem que crescera com a mentalidade do século 19. Ele acreditava em honestidade, responsabilidade, compromisso, dever, cortesia, coragem, cavalheirismo e todas as grandes qualidades que a sociedade do século 20 abandonou, dizendo que elas estavam obsoletas, mas que agora precisam desesperadamente ser recordadas e recuperadas. Jack também entendia bastante da humanidade e da natureza das espécies. Ele conhecia o sofrimento: ele perdeu a mãe aos nove anos de idade, experimentou os horrores de uma escola que parecia saída de um conto de Charles Dickens, e outras escolas em diversos graus de valor. Jack lutou na Primeira Guerra Mundial e assistiu a segunda, perdendo amigos e colegas em ambas. Ele manteve o compromisso firmado com o soldado e colega Paddy Moore na véspera da batalha, cuidando da família daquele homem durante mais de 30 anos. Jack aprendera a amar e a perder, e sofrera as agonias de ambos. Ninguém poderia condená-lo se ele tivesse se fechado e se tornado (como muitas vezes é descrito) um acadêmico isolado. Em vez disso, livre da responsabilidade de cuidar da Sra. Moore após a morte desta, ele mergulhou mais uma vez no amor e na dor ao se casar com a minha mãe, que já estava morrendo na época. Ele encarou a dor de amar alguém que ele sabia que provavelmente não estaria com ele por muito tempo, e também tomou para si a responsabilidade dos filhos dela, meu irmão e eu. Já não é uma tarefa fácil na melhor das circunstâncias, mas, naquelas em que ele se encontrava, era a tarefa de um verdadeiro herói.

Minha mãe era americana, e encontrou a verdade de Cristo através da leitura de Cristianismo Puro e Simples e outras obras de Jack. Ela escrevera para ele sobre as dúvidas dela pois, como todas as pessoas muito inteligentes, ela tinha dúvidas. Ela ficou encantada quando ele respondeu às questões e objeções dela de forma magistral e econômica, e uma correspondência animada logo se avolumou. Minha mãe visitou a Inglaterra em 1952 e ela, Jack e Warnie logo se tornaram amigos. Minha mãe era o equivalente intelectual de Jack, a única que eu já vi, e Jack ficava encantado quando, durante as discussões entre eles, ela corrigia pequenos erros dele sobre citações e outros detalhes. Minha mãe era um pouco mais lida do que Jack, pois ela lera tudo que ele lera, mas também os escritores americanos mais modernos. Ela também viajara mais, indo aos Estados Unidos e retornando com os filhos em 1953, quando o casamento dela com o meu pai acabou. Jack e a minha mãe se casaram quando ela estava no leito de morte, mas a mão de Deus interveio e ela se recuperou, entrando numa remissão do câncer que durou vários anos, anos esses que foram os mais felizes das vidas deles. Foi nessa época que a coragem física que ambos possuíam tornou-se evidente para mim. Estávamos subindo a colina em direção às árvores, minha mãe carregando a sua pequena “arma de jardim”, que ela usava para espantar os pombos da nossa horta e os invasores das nossas terras, quando os dois, um pouco à minha frente, foram abordados por um jovem carregando um arco e uma aljava cheia de flechas. “Com licença”, disse Jack educadamente, “esta é uma propriedade privada e você não deveria estar aqui. Poderia se retirar por favor?” A resposta do rapaz foi tirar uma flecha da aljava e preparar o arco, apontando para eles. Jack ficou na frente da minha mãe para protegê-la, e ficou ali alguns segundos até que a ouviu dizer em um tom gelado: “Droga, Jack, saia da minha linha de tiro!” Em seguida, Jack deu um rápido passo para o lado, deixando o jovem rapaz frente a frente com o cano da espingarda. Ele sumiu rapidamente. Eles foram corajosos, e Jack depois disso precisou ser ainda mais, pois a minha mãe partiu antes dele, deixando-o sozinho para lidar com a ausência dela.

C.S. Lewis foi um grande sábio? Sem dúvidas. Foi um grande escritor? Nenhum estudioso hoje em dia pode duvidar disso por um momento. Agora, algumas de suas histórias estão virando filme e ele está ficando mais conhecido no mundo inteiro, acelerando grandemente uma tendência que vem acontecendo lentamente nos 40 anos desde a sua morte. C.S. Lewis foi um grande professor? Também acho que isso é inquestionável: ele deu aulas nas universidades de Oxford e Cambridge, e ainda hoje ensina através de seus livros. Ele foi um grande teólogo? Muitos dos maiores estudiosos cristãos de hoje acreditam firmemente que sim. Ele nunca reivindicaria nenhum desses títulos, ou mesmo os aceitaria de outros; entretanto ele era todas essas coisas e muito, muito mais.

Terra das Sombras é uma recriação fictícia de uma pequena parte da história de Jack. Na peça, você verá um homem na sua provação mais difícil, suportando o mais pesado dos fardos. Você poderá ter um vislumbre do que acontece com os grandes homens. Não é totalmente fiel à história real, talvez, e não se pretende que seja, mas é uma ótima peça, que fala profundamente aos corações dos homens.

Sabe, enquanto C.S. Lewis era um grande sábio, um grande escritor (de muitos gêneros), um grande professor e uma grande teólogo, Jack era um grande homem.

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Acompanhe a Semana C.S. Lewis também através do site da Sociedade Brasileira C.S. Lewis.